Antes da Inquisição

Origens da diáspora sefaradi

Na Península Ibérica, região de convivência multissecular entre cristãos, muçulmanos e judeus, e onde havia a população judaica mais numerosa de toda a Europa, as perseguições recrudesceram apenas no final do século XIV. Em Castela, Aragão ou Catalunha, milhares de judeus se converteram ao cristianismo para escapar às perseguições, em geral populares, insufladas por clérigos e frades, dando origem à comunidade espanhola de conversos. Os convertidos ficaram mais ou menos livres das perseguições até 1478, quando os Reis Católicos, Fernando e Isabel, instituíram a Inquisição em terras espanholas.

A partir da década de 1480 os conversos se tornaram alvo de uma perseguição oficial, realizada por um tribunal religioso vinculado à Coroa. A suspeita que recaía sobre eles era a de que judaizavam em segredo, cometendo heresia, o que muitos faziam por serem ligados à comunidade judaica, ainda vigorosa na Espanha do século XV. A onda de conversões não foi suficiente para apequená-la, muito menos para extingui-la. O gołpe seguinte foi o famoso decreto de expulsão da Espanha, em 1492, de todos os judeus, cuja maioria fugiu para Portugal. Estima-se que no mínimo 40 mil judeus ali entraram naquele ano, número imenso para a época.

À diferença dos reinos hispânicos, não tinha ocorrido em Portugal nenhum surto persecutório contra os judeus ao longo do século XV. Não existia, no reino dos Avis, uma comunidade de conversos similar às de Castela ou Aragão, de sorte que a comunidade sefardi portuguesa continuava a ser, fundamentalmente, judaica. Ela vivia, como em toda parte em bairros próprios -as judiarias- sofria restrições, porém estava bastante integrada à sociedade cristã, sendo respeitada enquanto minoria religiosa. Havia judeus em quase todos os ofícios manuais ou intelectuais -artesãos, médicos, cirurgiões e comerciantes de variado porte. Os judeus desempenharam, por sinal, importante papel nas navegações portuguesas, atuando no círculo de sábios que cercavam dom João II e, depois, dom Manuel. Abraão Zacuto é apenas o principal exemplo de cosmógrafo real na corte manuelina.

Mas a convivência pacífica entre cristãos e judeus portugueses iria mudar radicalmente, a partir da expulsão dos judeus hispânicos decretada pelos Reis Católicos. A entrada em massa de judeus espanhóis no reino português despertou forte desconfiança nos setores mais tradicionais da Igreja e da alta nobreza, que passaram a exigir da Coroa medidas similares às adotadas em Espanha contra os judeus. Em 1495, quando da ascensão de dom Manuel ao trono, a sorte dos judeus em Portugal mudaria de vez.

A insatisfação das classes tradicionais diante da multiplicação de judeus no reino foi acrescida pelas pressões da Coroa espanhola, que passou a exigir de dom Manuel um decreto similar ao dos Reis Católicos: expulsão dos judeus ou conversão de todos ao catolicismo, sem exceção de nenhum. O rei português, interessado em esposar a infanta Isabel, fiIha de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, cedeu às pressões. Portugal despontava, então, como grande potência marítima, enquanto a Espanha mal conseguia unificar seu próprio reino. Dom Manuel projetava, por meio desse matrimônio, promover uma futura união Ibérica sob a dinastia de Avis.

Em 1496, o rei promulgou decreto similar ao baixado pelos Reis Católicos em 1492. Ficou estabelecido que, no prazo de um ano, todos os judeus residentes no reino deveriam abandoná-lo, exceto se aceitassem a conversão ao cristianismo. Em 1497, conforme o previsto, o decreto foi aplicado, porém com uma diferença essencial. No caso espanhol, a imensa maioria dos judeus tinha preferido abandonar o reino, rejeitando a conversão. A Coroa os deixou partir. No caso português, ao contrário, foi o próprio rei que obstou, de várias maneiras, a partida dos judeus. Chegou ao ponto de ordenar batismos em massa nos portos em que os sefardim se preparavam para o embarque, segundo a crônica da época. Dizia mesmo que “não queria perder os seus judeus”, tão necessários à economia do reino.

Disso resultou da noite para o dia, a imensa maioria dos judeus residentes em Portugal se viu transformada numa comunidade de conversos, ali chamados de cristãos-novos. Não por outra razão, o decreto espanhol de 1492 ficou conhecido como decreto de expulsão dos judeus, ao passo que o portuguës, embora seu texto fosse quase idêntico, acabou afamado como decreto de conversão forçada dos judeus.

De todo modo, a comunidade judaica do reino português tornava-se, cada vez mais, hispano-portuguesa, graças aos enlaces matrimoniais entre as famílias sefardim portuguesas e espanholas. Esse processo de entrelaçamento hispano-português entre os judeus- simultaneamente familiar, econômico, religioso e cultural- estreitou as relações entre os cristãos-novos de Portugal, parte deles de origem hispânica, e os conversos da própria Espanha. Formou-se, por assim dizer, uma extensa família sefardi, com várias ramificações, que desconhecia as fronteiras entre os reinos ibéricos.

Além disso, os cristãos-novos residentes em Portugal gozaram de amplas liberdades no reinado de dom Manuel, que, apesar de novas pressões, evitou instituir um tribunal inquisitorial similar ao espanhol. Na prática, embora sem sinagogas e tendo seus livros confiscados, os cristãos-novos hispano-portugueses poderiam permanecer judeus, se assim o desejassem, ao menos em suas casas ou nas esnogas improvisadas. Muitos o fizeram, amparados em decisão real de que os cristãos-novos não poderiam ser molestados por motivos religiosos durante 20 anos, a contar de 1497.

O quadro mudaria somente no reinado de dom João III, iniciado em 1521. Em 1536, depois de uma série de percalços, seria instituída a.Inquisição em Portugal, moldada na congênere espanhola e tendo como alvo os cristãos-novos suspeitos de cometer a heresia judaica, isto é, judaizar em segredo, não obstante batizados no catolicismo. Em 1540 foi celebrado o primeiro auto de fé em Lisboa, com dezenas de cristãos-novos condenados à fogueira como hereges convictos e impenitentes.